2006-05-31

José Carrapatoso


Por Duarte d’Oliveira

Eu conheci o Carrapatoso em Mocuba. Um amigo, com quem partilhei noites de boémia – de alta boémia – que se prolongam na memória.

O Carrapatoso era um excelente diseur. No bar do Clube Ferroviário, já com a porta fechada, pela noite dentro cantávamos baladas e fados de Coimbra. E outras cantigas, ditas de intervenção. Acompanhados à viola, por um colega (minhoto) cujo nome não lembro, ou sem viola. Mas com cerveja. Muita cerveja: Laurentina, 2 M, Manica

Dessas noites lembro, também, o senhor, já idoso, que geria o bar. Cantava connosco. Com frequência, a solo. De forma sentida e comovente. Muitas vezes lhe vi lágrimas a descerem-lhe pelas faces. Tisnadas, sob os cabelos grisalhos. Era um homem bom. Um poeta. Ou tão-somente um eterno estudante. De capa e batina que nunca vestiu. De uma cidade onde nunca terá estado.

Um poeta. Como o José Carrapatoso. Que não escrevia – como o Mário Viegas, cuja discografia está agora a ser reeditada e distribuída pelo Público – mas dizia. De memória e verbo à solta.

Uma noite, em casa de ----, uma casa de caniço, num dos subúrbios da cidade, perto da margem direita do Rio Licungo e da Ponte Cardeal Cerejeira, o Carrapatoso disse de António Gedeão o poema “Lágrima de preta”.

Disse-o tão eloquentemente que foi afastado de Mocuba e enviado para a região de Tete.


Com a discrição que as circunstâncias exigiam, mencionei o caso num conto que escrevi – e que foi publicado na página “Jovem”, do Notícias da Beira. Ao lado de dois poemas, um do Sebastião Alba e outro da Natália Correia. – Pouco tempo depois, no Comando de Agrupamento foi emitida uma “Ordem de Serviço” que determinou umas quantas interdições, entre as quais (cito de memória) a de escrever para os jornais sem prévia autorização. Devo confessar que terei forçado um pouco a nota porquanto sugeri que o conto faria parte de uma antologia já com nome: - “Dois anos embrulhados numa farda”.


Numa conversa, provavelmente na esplanada da Estalagem, sob a ramagem amena da acácia, eu disse-lhe que na adolescência conhecera uns Távoras. Numa escola (familiar) que frequentava no Restelo, em Lisboa, num prédio contíguo à moradia da viúva do tripulante (João José Nascimento Costa) do Sta. Maria que ofereceu resistência ao assalto liderado por Henrique Galvão…. . Depois de umas quantas explicações bem divertidas sobre a dispersão da família, dois séculos antes perseguida e executada pelo Sr. Marquês de Pombal, e os critérios que regularam a distribuição dos títulos de nobreza pelos sobreviventes, decidiu assumir o grau de nobreza e disse-me, brindando com outro copo de cerveja: - “Eu sou José Carrapatoso, Marquês de Távora falido e Conde de Poirez mais falido ainda”.

O José Carrapatoso, José Carrapatoso de Távora e Poirez, não integrava o Comando de Agrupamento 2972. Todavia é – para mim (e decerto que para outros colegas) – uma figura relevante do nosso tempo de guerra.

Quem sabe dele?
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Ilustração: "Nú com flores", 1960, de Malangatana, quadro Recolhido em http://www.africa.upenn.edu/Smithsonian_GIFS/Malangatana.html

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